O filme acompanha o anti-herói Deadpool numa visita por várias realidades diferentes, de forma a encontrar um
qualquer Wolverine - neste caso o pior de todos - que possa trazer de volta para a sua realidade e impedir a sua
destruição. É o típico enredo de alguém que na sua cabeça ambiciona ser um herói e que cuja vida extremamente
aborrecida necessita de um abanão que lhe permita mostrar a todos o seu valor. Um arquétipo simples e com
que todos - miúdos e graúdos - se podem facilmente identificar, afinal de contas a mitologia é transversal à
existência humana e os filmes de super-heróis têm um enorme potencial para inspirar. Esta obra é, no entanto,
um mero veículo sensacionalista que se recusa a largar a mão da audiência por um segundo que seja, utilizando
todas as táticas possíveis para capturar a nossa total atenção e assim, manipular a uma sensação de
entretenimento instantâneo, limitando-se a reflectir o níilismo moderno. O verdadeiro cinema de Schrodinger,
totalmente desconexo e inconsequente, onde nada significa nada e pouco importa se uma personagem está viva
ou morta. O enredo batido e sequestrado por constantes desvios que introduzem infindáveis personagens,
cameos e falácias narrativas inconsistentes que aqui, na redundância do multiverso, servem apenas para o
propagar e vender pipocas - como que uma coca cola light de zero açúcares adicionados ou alimentos biológicos
e sem glutén que nos permitem pagar só mais um bocadinho, por algo igualmente nocivo mas que pelo menos,
nos faz sentir melhor com nós próprios.
Não há peso e tudo se resume a infindáveis micro fatias digitais e um supérfluo scroll pelo tik tok da Disney, que
evita consequências e satiriza sem especificidades, disparando constantes munições secas tanto contra a ex-
produtora como a actual, que alimentam pouco mais do que fugazes risos. Tudo existe para uma momentânea
salva de palmas perante o surgimento de qualquer personagem interpretada por um velho ator, seja o Wesley
Snipes, o Chris Evans ou a Jennifer Garner.
A grande diferença entre o cinema comercial e o de autor, é na minha opinião, a honestidade. Só um deles tem
o poder de mudar as nossas vidas porque só um deles ousa assumir uma identidade própria. Em filmes como
“Deadpool e Wolverine” o enredo é sempre o mesmo e só muda a fatiota. Quando foi a última vez que alguém
ficou a pensar num filme durante semanas?! Ou sentiu as suas crenças desafiadas e desconstruídas pelo que
acaba de ver?! É fácil gostar de um saboroso hambúrguer do McDonald’s, mas o que nos aconteceria se o
comêssemos a todas as refeições?!
Mark Fischer, em “Realismo Capitalista” exclama que, parafraseando, o capital é um parasita abstrato, um
vampiro insaciável e criador de mortos-vivos; mas a carne viva que converte em trabalho morto é nossa e os
mortos-vivos, somos nós, esta analogia aplica-se não só ao filme mas á sua audiência.
A depressão hoje em dia tornou-se endémica. Esta, geralmente descrita como anedonia, ou a incapacidade de
sentir prazer, é aqui precisamente o contrário, a incapacidade de sentir algo além de prazer. A constante
sensação de que falta algo. Pessoas fartas da rotina diária, do trabalho, da mesma rota, mesmas caras, mesmas
conversas e funções, de cozinhar, comer, dormir, tomar banho e repetir tudo no dia seguinte. Abate-se sobre
nós um aborrecimento avassalador que se manifesta numa narcose de netflix, comida de plástico, playstations,
redes sociais, marijuana e outras drogas ainda mais destrutivas ou, até, racismo. A necessidade constante pelo
imediato e por respostas fáceis a problemas complexos.
Durante as duas horas de duração, o Deadpool é várias vezes esventrado mas nunca tanto como o próprio filme,
cujas entranhas são substituídas pelo simulacro outrora vistoso e que agora, oco, expõe os mecanismos e
aparenta questionar e incorporar na trama, o seu estatuto enquanto mercadoria, subordinando-se a uma
realidade infinitamente plástica e insuportável, capaz de se reconfigurar a qualquer momento e construir uma
teia mutável de inconsistências. Tal como toda a cultura e o vasto universo mitológico da Marvel, o filme
privilegia apenas o imediato, o excessivamente nostálgico e retrospetivo, sendo incapaz de gerar qualquer
novidade ou olhar sequer para o futuro, o seu único interesse está em criar entretenimento passivo. Esta
reterritorialização e desterritorialização resulta num kafkaesco e inavegável labirinto, onde o que é novo é tido
como uma ameaça, acorrentando o espectador e a sociedade em geral, a uma toxicodependência de serotonina
fácil e que procura o conservadorismo e a estabilidade do familiar.
Tal como no sistema negativamente ateológico em que vivemos, o centro - a essência - está em falta. E não falta
por não existir, mas sim, porque o que lá está é incapaz de exercer responsabilidade e unificar os diferentes
elementos.
E o tal aborrecimento diário avassalador, advém só e apenas do corte com a tal matriz sensorial e o constante
fluxo de estímulos e gratificação imediata, que nos vicia como o açúcar que nos corre pelas veias. Se o pouco
tempo que temos livre, é passado a consumir entretenimento passivo, então tudo o que isso faz é viciar-nos em
consumir mais e tudo de igual forma, falhando-se em perceber que a difícil digestão de certas obras, é intrínseca.
A consequência é a perda de foco e concentração, a depressão. E a privatização das doenças mentais, que nos
vende a ideia de que o problema é meramente um desequilíbrio químico e que se foca apenas em nos vender
soluções em forma de comprimidos, ignora as causas sistemáticas e a insustentabilidade desta barreira invisível
que restringe pensamento e ação. Que pinta a fome e a guerra como consequências inevitáveis da existência
humana e que nos convence de que o contrário, é uma utopia inalcançável. A dissidência é assimilada e
transformada em mais um sabor de gelado, fruto da fantasia de que o consumismo ocidental pode resolver
todos os problemas, basta apenas comprar os produtos certos. Não gostas de filmes de super heróis? Odeias a
Disney?! Tranquilo, compra aí um bilhete pró Deadpool. És contra a guerra?! Na boa méne, partilha aí a
bandeirinha no facebook. Preocupas-te com o aquecimento global? Sem stress ó maninho, bebe aí um café do
starbucks, que é caro, mas pelo menos estás a ajudar os pretinhos lá da amazónia a calçar uns ténis converse.
Isto só acontece quando cedemos à catarse. A atual saturação causada pelas centenas de filmes de super heróis
dos últimos anos, pode ser combatida ao ver um filme como o Deadpool, porque este goza com isso mesmo. Se
acreditarmos profundamente nesta ideia que nos vendem, então somos livres de continuar a alimentar a
máquina. É precisamente o desdém anterior que nos permite fetichizar e propagar o seguinte e não se
preocupem, porque podem sempre comprar uma t-shirt anárquica na Fnac à saída do cinema ou ler um livro de
Jordan Peterson.
O filme, inerentemente bipolar e analfabeto, dispõe de um vernáculo cinematográfico tão vulgar quanto
aborrecido enquanto nos cobra pela nossa própria exploração e a incredulidade pelas metanarrativas, nunca
passando de pacificação colectiva e lucro fácil que fomenta a abstenção, uma catarse de fácil deglutição e que
apenas acelera a defecação. E fica a dúvida - os espectadores - serão eles os consumidores, ou o produto ?!
Os mais poderosos e íntimos desejos humanos, os que nos movem e concretizam, são os que perseguem o
imprevisível, o novo, a parte funda da piscina e isto só se atinge quando se está disposto a correr riscos e ignorar
o imediato. O cancelamento do ‘longo prazo’ resulta invariavelmente na estagnação e no conservadorismo, não
na inovação. Isto não é um paradoxo. É o culto da variação mínima que se alimenta do medo e do cinismo e que
reproduz conformismo e produtos muito semelhantes aos que já temos. No passado, filmes como o Stalker e o
Solaris de Tarkovsky que, produzidos pelo estado soviético de Brezhnev em condições pouco propícias,
funcionaram como um proto-empreendedorismo cultural, que daria à luz Alien e Blade Runner em Hollywood.
A internet facilita comunidades solipsistas e redes inter-passivas de validação mútua que, em vez de desafiar
crenças e opiniões, fecham-se em eeco-câmara e permitem a políticos populistas, sejam eles de esquerda ou de
direita, de intimidar produtores a lançar conteúdo anódino e medíocre. E apelar a um melhoramento cultural é
visto como opressivo e elitista. Se queremos enfrentar as catástrofes que se avizinham, é imperativo combater
a homogeneidade, a questão é, se estas mudanças serão concretizadas coletivamente e de livre vontade ou
impostas por um regime opressor quando for já tarde de mais. E se este regresso a um superego paternal não é
desejável, então como é que podemos ultrapassar a cultura estéril de conformidade monótona e moribunda,
que resulta na recusa de desafiar e educar a população?!
É desolador a realização de que a maioria das pessoas nunca se sentirá completamente transformado a longo
prazo por uma obra de arte. Talvez só no final da vida, num qualquer hospital privado e ligados a uma aberrante
máquina que nos mantém vivos enquanto uma qualquer doença nos consome e suga todas as poupanças via
tubos e fios enfiados em todos os orifícios e quando os nossos filhos carecerem de futuro, talvez só aí, é que
iremos parar para pensar se deveríamos ter feito mais do que passar o tempo a ser consumidos por fábulas
heroicas e redes (anti) sociais infinitamente inúteis. O sistema derrota-nos não através da violência opressiva,
mas das crescentes contas por pagar que se multiplicam a cada compra, a cada carro, casa, filho, jóia e aparelho que apita e pisca em milhentas cores diferentes. O sistema derrota-nos através da desistência e resignação
diária, das pequenas cedências perante o lento e necrótico deja vu ad infinitum que nos obriga a abandonar os
sonhos por uma fugaz e dependente existência e nos faz questionar: “Porra, será que viver é só isto?!” O tempo
de trabalhar para um futuro melhor, é agora... Mas bem, onde é que eu ia? Ah, já sei, vão ver o Deadpool, é fixe. Wink. Wink.
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