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BREVE ENSAIO SOBRE A ODE MARÍTIMA

Foto do escritor: cmapaivacmapaiva

Wilson Godinho (22/12/2022)

Nunca é tarde para revisitar a Ode Marítima conquanto se nela ache, não apenas a portugalidade – essa coisa elegíaca-, mas igualmente a atualidade, em toda a sua plenitude.


Ainda que date de 1915, a ode é o espelho de um Portugal ido – e quiçá de uma ida universalidade europeia -, profano, telúrico, sujo. Um Portugal de psiquismo ancestral, sanguinário, purulento, pirata. O Portugal do contratualismo invertido - o estado natureza; não o rousseauniano, o de “Deus dum culto ao contrário”.


Que se fez então desse Portugal? Que fizemos nós de nós? Onde encontrar a perdida menstruação das mães remotas? A palidez das crianças esventradas? O temor preto do canhão maquinal? Onde? Quando? Como?


Se a técnica e a máquina nos higienizaram, não foi tanto pela vontade como pelo medo; o medo dos ventres expostos; a ânsia meridional do estrangeiro; o desassossego das ilhas longínquas; a náusea oblíqua dos mares salgados; do insólito, do misterioso, do incerto.


Eu engenheiro, eu médico, eu farmacêutico; que fizemos de nós? Edificámos um mudo doméstico (ou devo dizer domesticado?) de etiquetas e faturas. E tudo por medo e cobardia!


E se pudéssemos despir de nós “o traje civilizado”, a “brandura de ações”, “o medo inato das cadeias”, “a pacífica vida”, a “vida sentada, estática, regrada e revista”, os “limpos, regulados” guichets, o “gentleman”, o higiénico “ar do mar”?


Mas dão-nos carimbos. Dão-nos o comércio – o comércio!


Obrigam-nos a ser “fortes, práticos”. E que doçura não há nisto? Que “maravilhosa vida marítima moderna, /toda limpeza, máquinas e saúde!”. E de novo a beleza anónima da fatura; onde o desvario faleceu e as paixões foram esbatidas. O sangue, a batalha, o mar, a Patagónia, o estertor do canhão, os húmidos porões, as vigílias, a força, a raiva, “o cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima” são agora Símbolo, “Distância Abstrata”.


E mesmo assim – mesmo arrecadando as paixões e a ebriedade! -, não largaríamos nunca as “saias da civilização”; a melodiosa ociosidade civilizacional, o “humanitarismo moderno”!


Mas duvido que não venhais um segundo comigo, leitor! Quanto de Portugal está no mar e no sangue? Quanto de Universal não é este cinzelamento de sangue da alma? E se não vens – nem que seja por breves e fugazes instantes, de olhos abertos que apenas o sonho tampam -, então não te pertence o “Longe”, “a bruma de Deus”; e a tua fraternidade ou é revolucionária (dessa francesa e russa!) ou é de gente que realiza sonhos neste mundo educado, onde se pode “ver com facilidade todas as coisas”.


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